Primaverno

(Primaverno, Verão, no Outono hiberno)


Na primeira lua do ano o esplendor das magnólias nuas já antecipava a boa-nova que sempre lhes coube anunciar: vivem à frente do tempo, vêm para mostrar que há esperança no Inverno acabar. Já não importa saber se-quando-e-como é que ele chegou a começar.

“Primaverno”. O jasmim emancipou-se em flores temporãs ainda o Sol não alumiava os botões vermelhos que seduzem o muro. Uma subtil ameaça exala no ar, a fragância fascina os instintos dos gatos que passam em total liberdade.

No pico do Inverno, a pujança do maracujá permitiu-lhe edificar a sua própria pérgola suspensa no vazio – carregada de fruto da paixão, desprolongando a hibernação – desobrigando até as orquídeas a reprimirem a floração.

Pouco a pouco as hortas vão revelando uma língua secreta. A gramática compõe-se com sementes indecifráveis que circulam nos bolsos dos traficantes frugais. Trazem pés de aromáticas embrulhados em pacotes de papel do pasquim do momento. Jogam à dialéctica da enxertia de hastas de alecrim, discorrem sobre rebentos lexicais de erva-príncipe. Inteiras edições de jornais são fechadas com as unhas cheias de terra.

O estio passa no tempo de uma velha comer uma maçã, com rituais de rega diária e turnos de quem cuida de matar a sede ao solo. A nudez dos canteiros veste-se de alimento. Mulheres dançam e regam sem roupa, riem das notícias de alfaces que diz-se que singraram no espaço (que o desaparecimento das mais tenrinhas é fruto de um vórtice estratosférico, contrariando os rumores de intrincados labirintos escavados por doninhas-anãs). Os logradouros lembram vagamente a promessa fértil da periferia e da transgressão.

No Verão à vinha chega o pintor,

abrem-se janelas nos dentes do sorriso de quem colhe tomates.

No Outono o Sol recua em palmos de canteiro a cada dia que passa,

eu mondo, tu lavras. Ele revolve, tu lenhas. Eu rego, eu prego, ele canta.

Nós damos as mãos por cima do fogo onde os braços convergem. Assamos colheitas cansadas só pelo prazer de nos ligarmos à terra. Trocamos figuras do ano em que as hortas se multiplicaram, para regressarmos depois então ao quotidiano do pequeno quintal – eterno ponto de observação do generoso escândalo da reprodução.

Onde deixamos o fruto cair só para contemplar o que dele pode desabrochar

se catamos daninhas como quem cata piolhos à cria de quem se cuida…

se nutrimos as entranhas da terra e as estações assim se sucedem…

se em nós brota a ideia de um deslumbramento visceral…

viver em pleno a abundância frugal.

Texto produzido para o programa O SOM É A ENXADA da Rádio Manobras.

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