«y en la tierra se abren surcos para sembrar algo nuevo.»
Silvia Tomas, Todo se mueve / Desaprendiendo lo aprendido
Visita a uma “horta indignada” de Barcelona
Por entre uma frincha nos tapumes de obra que encerram o quarteirão entre Llull e Lllacuna, no bairro de Poblenou em Barcelona, confirmamos os versos da canção da Silvia Tomas – “na terra abrem-se sulcos para semear algo novo”.
Lá está ela, La Vanguardia, a nona horta comunitária a ocupar um terreno abandonado só naquele bairro desde 2011 – ano do 15M, das acampadas e dos indignados que deram depois lugar à descentralização das assembleias para os bairros da cidade.
Enquanto espero pelo comparte deste baldio urbano que me vai mostrar a horta – e sob o sol abrasador de uma tarde de fim de junho – vou sondando o que vejo em redor.
Do lado de fora, virado para o passeio, um painel informativo desenhado à mão resume para quem passa o que é esta horta comunitária: um “colectivo de vizinhos e vizinhas”, que ocupou e recuperou um espaço abandonado, transformando-o num “ponto de encontro para o bairro”. “Um espaço de acesso livre e autogestionado” onde se desenvolvem “actividades sociais e culturais”. As decisões são tomadas em assembleia, e todos e todas são bem-vindos, desde que tenham “ganas” de participar e respeitem o espaço e as pessoas, já que aqui “não se admitem atitudes machistas, xenófobas nem egoístas”.
Do lado de dentro, um placard enfrenta a porta da rua com outra máxima: “mais pimento, menos cimento”.
Um terceiro painel, maior, afixado num edifício devoluto do outro lado da rua, não parece estar ali por coincidência: mostra uma cidade em colapso acompanhada pela mensagem “Os hotéis afundam o bairro. PLANTEMOS!”
“Distrito da inovação” vs. Regeneração do bairro
Desde o início dos anos 90 que o antigo bairro operário de Poblenou começou a sofrer uma profunda transformação urbanística. A demolição das antigas fábricas naquela área do distrito industrial de Sant Martí – conhecido como a Manchester da Catalunha no século XIX – deixou quarteirões inteiros de terrenos vazios destinados à edificação futura (“solares”, em catalão). O plano de renovação urbana ganhou força no ano 2000, com a aprovação do mega-projecto de “regeneração urbana” Arroba 22 que promete uma “nova cidade” – literalmente Poblenou – transformada em “distrito da inovação”.
O projecto de “renovação urbana, renovação económica e renovação social” pretende construir uma área de 4 milhões de metros quadrados (em andares), e atrair empresas internacionais e “pessoas de negócios” nos ramos da tecnologia, dos media, da energia, do design e das biomédicas. Fecham-se negócios de milhões e o cenário em redor vai-se transformando num misto de inox, vidro e condomínios fechados que convivem com armazéns antigos agora dedicados às “indústrias criativas”, e os templos do consumo de sempre, sobretudo na grande avenida Diagonal, que corta a cidade a meio, e nas Ramblas de Poblenou.
Encontro o Theo Gozman num cruzamento que tem em cada esquina um símbolo desta transformação – atrás de nós está um quarteirão demolido (metade horta, metade em obras), à nossa frente um edifício em ruína, e dos lados um prédio moderno e uma igreja.
O Theo faz a contextualização:
«Aqui vivia normalmente gente que vivia do mar – pescadores, ou gente que trabalhava nas fábricas. Quando as fábricas fecharam (…) muitas das pequenas fábricas tiveram de fechar, pequenos produtores (que havia muitos!) tiveram de fechar, transportadoras (isto estava cheio de transportadoras) que tiveram de fechar, e muitos edifícios que ficaram vazios, em ruínas… ‘solares’ por todo o lado. E muitos dos edifícios que foram demolindo deram lugar a muitos espaços vazios e onde não se está a construir nem a fazer nada. E então o bairro, para resgatar um pouco a vida do bairro, a integridade do bairro e o espírito do bairro, foi recuperando estes lugares e reconvertendo-os em hortas urbanas.»
La Vanguardia
Ocupada em meados de 2016, a horta adoptou o nome do anterior proprietário do terreno, o jornal “La Vanguardia”, empresa (em tempos pública) que se viu obrigada a ceder o terreno à Câmara Municipal de Barcelona devido a uma lei que andava esquecida na gaveta. O actual governo de Ada Colau (à frente da câmara desde junho de 2015) pôs em prática uma lei já existente que obriga os proprietários a destinar 10% ou 15% da área total ao usufruto público, por cada xis metros quadrados de terreno. Segundo o Theo,
«Se és um opulento milionário e tens hotéis, terrenos e (…) um património imobiliário enorme, em Barcelona tens a obrigação de dedicar uma parte ao uso público»
O facto de se tratar de um lote público, considerado espaço verde graças à sua requalificação como horta urbana, dá alguma segurança aos hortaleiros em relação à permanência da ocupação. Não obstante a esperança depositada na edilidade e as boas relações com a actual administração local, quando La Vanguardia foi interpelada com a proposta de integração na “rede de hortas urbanas” promovida pela Área do Meio Ambiente da Câmara de Barcelona desde o final dos anos 90, o colectivo de vizinhos decidiu em assembleia que isso não interessava, preferindo manter a horta como projecto autónomo de gestão comunitária.
Num artigo publicado em 2014 no website arquitectura politica sobre “as redes de hortas urbanas (no plural)”, o balanço da iniciativa camarária é visto como positivo, e “tanto a demanda como a oferta de parcelas nestas hortas tem crescido nos últimos anos”. O autor, Marc Fernandez, acredita no entanto que os seus objectivos “são muito pouco ambiciosos tendo em conta o potencial que uma horta tem a nível urbano, a nível ambiental, mas sobretudo a nível social”, e recorda que “existem outros modelos à margem das instituições que oferecem experiências mais enriquecedoras”.
São as hortas urbanas comunitárias, como La Vanguardia em Poblenou, onde mais do que cultivar alimentos, cultiva-se a auto-gestão e a organização assembleária.
«Sábados e domingos são dias de trabalho comunitário. A porta está aberta quase todo o dia, as pessoas entram, aproximam-se, perguntam, e fazemos uma sobremesa, muito bonito e familiar tudo. (…) o dia que teve mais gente foi o dia da festa dos mortos.»
Fora dos dias de trabalho comunitário e de festa, a porta da horta mantém-se trancada, por questões de segurança e “até que [haja] gente suficiente a tomar conta [do espaço] e a fazer o que é preciso”. De forma a conseguir cobrir as diversas necessidades, os hortelãos e as hortelãs vão-se revezando nas tarefas de manutenção. “Por agora, por causa da época do calor, é a rega”. Estão a regar todos os dias, mas ainda assim, perdem-se colheitas – segundo o Theo, um dos contras de não haver talhões individuais (tudo é de todos), o que em alturas do ano como esta, em que toda a gente está de férias, quer dizer que a horta fica um pouco descuidada e há alimento que acaba por espigar, ficando por aproveitar.
«A nossa ideia não é a auto-sustentabilidade…porque o espaço e a nossa infraestrutura não permitem que vivamos desta horta. A ideia é mais combater um pouco este ataque bestial do capitalismo neoliberal através da especulação imobiliária e criar um lugar de comunhão, um núcleo onde podemos conviver, partilhar e desfrutar como vizinhos, porque não tínhamos esse espaço.»
Foram então ocupando o espaço da Horta La Vanguardia com camas de cultivo, vermicompostores e depósitos de água, sementeiras e viveiros, uma cozinha comunitária, uma galeria improvisada ao ar livre com peças feitas a partir de materiais reciclados, um palco para teatro e concertos, uma área para as crianças brincarem, e murais coloridos que circundam o espaço outrora vazio. Com o brilho nos olhos de quem cuida, o Theo fala do prazer de poder desfrutar em comum de um lugar como este, no bairro da cidade onde vive.
«(…) Porque a convivência, esta capacidade de sentir pessoas que apesar de não pensarem como tu ou de serem distintas de ti, temos sempre este ponto de encontro que é a horta, com a qual nos identificamos todas – este amor à terra, este amor à natureza – e neste espaço coincidimos. Há gente de muitas partes, com outras ideologias, sobretudo isso, de muitos países, é uma colmeia de gente de muitas partes. Mas temos esta capacidade: quando estamos na horta somos todos da horta.»
Aproximamo-nos de uma cúpula geodésica virada para o pôr-do-sol, à qual chamam “o útero”.
A construção marca a entrada na zona selvagem: um espaço da horta reservado às plantas espontâneas, muitas vezes exóticas, onde se cultivam os princípios da inclusão, da diversidade e da integração.
Numa parábola sobre a emigração e a elitização das espécies, o Theo termina a visita com a história dos papagaios verdes desenhados ali no mural. Vêm da América do Sul e multiplicam-se como sementes pelos espaços verdes da cidade.
Mais Pimento Menos Cimento | O SOM É A ENXADA #59 (06SET2017). Ouve: