«Cabe a cada um de nós apreciar em que medida – por menor que seja – podemos contribuir para a criação de máquinas revolucionárias capazes de acelerar a cristalização de um modo de organização social menos absurdo que o atual.»
Félix Guattari, Revolução Molecular: pulsações políticas do desejo
«Optara conscientemente por este destino tranquilo em que a moleza nativa de todo um povo mostrava o seu engenho.»
Albert Cossery, Mandriões no Vale Fértil
Autonomia. A ideia repete-se alto e bom som, ecoa nas mais profundas masías catalãs, pulsa insolente no coração da grande cidade. Rizomas de pessoas auto-organizadas em torno de um comum transversal: soberania integral, autonomia da banca e do Estado.
Estão a trilhar os desígnios de um tempo que vem acoplando ideias de autonomia e liberdade. Usam como ferramentas a auto-gestão, a auto-organização, a democracia directa, medidas de intercâmbio, e muito poucos euros.
Formam uma rede de redes contra-poder cujas raízes já se espalham bem além da Catalunha. Em todo o território legal espanhol, existem pelo menos 200 eco-redes de economia solidária. Juntas entrelaçam milhares de pessoas numa vontade comum: ser engrenagem de um sistema de resiliência pós-capitalista. Cada grupo local – eco-rede – tem a missão de impulsionar uma economia alternativa baseada em critérios de reciprocidade, proximidade, solidariedade, confiança, cooperação, bem comum e ecologia. Só na Catalunha, as “ecoxarxes” (na língua catalã) são cerca de 40.
“Somos miles de islas, hagamos archipielagos”
O mote lançado pela Casa Invisível, em Málaga, concretiza também aqui a sua utopia. Fartas de não terem como subsistir, do roubo generalizado, do desgaste em lidar com as estruturas da autoridade, do isolamento, da fragmentação, do exílio e da deserção, em suma, da violência de existir em tempos de crise sistémica na periferia do Sul da Europa, resgatam a dignidade colectiva passando de indignadas a nós activos na superação da dependência do sistema capitalista. Dizem-no sem parcimónia. Mesmo que os pés ainda calquem dois mundos, distinguem muito bem a direcção para onde se projectam.
![Montserrat. Lá, como cá, a viagem para o interior percorre complexos industriais decadentes e fábricas em ruínas, abandono.](https://saritamoreira.com/wp-content/uploads/sites/2/2014/08/montserrat-1024x575.jpg)
Em Julho de 2014 auto-organizou-se o “V Encontro de Eco-redes e Moedas Livres” na Catalunha, com o propósito de fortalecer relações entre pessoas que participam em redes de economia solidária.
Cerca de 60 membros de mais de uma dezena de eco-redes locais (cada uma com a sua moeda), vieram de diferentes comunidades, aldeias, vilas e cidades da Península Ibérica (quase todas da Catalunha), para participar em dois dias de dinâmicas que pretendiam fomentar a criação de acordos entre diferentes grupos locais.
![Mapa de eco-redes presentes no quinto “encontro de eco-redes e moedas livres”.](https://saritamoreira.com/wp-content/uploads/sites/2/2014/08/Acogida-Mapa-1024x380.jpg)
Quem abriu as portas ao encontro foi o eco-projecto Selmellà, um restaurante fora-de-estrada reactivado nas profundezas da cordilheira pré-litoral catalã. O eco-projecto traz nova vida à Masía Can Figueres, repovoada por quatro italianos que mantêm e exploram o espaço orientado-se por princípios de permacultura e prácticas de alimentação saudável. A cozinha abre só aos fins de semana oferecendo um menú ecológico, sustentável, de qualidade, a “degustar de forma relaxada”, com uma bela vista para cerejais sulinos rematados por um pequeno bosque e imponentes rochedos.
![Terraço do eco-projecto Selmellá, onde na primeira noite houve direito a pasta com pesto feito de plantas selvagens que crescem ali no monte.](https://saritamoreira.com/wp-content/uploads/sites/2/2014/08/terraço1-1024x575.jpg)
![O forno de adobe a lenha é um ex-libris do eco-projecto Selmellá.](https://saritamoreira.com/wp-content/uploads/sites/2/2014/08/terraço-1024x575.jpg)
Faz-tu-mesmo em transição:
DIY → DYT – Do-Yourself-Together
Desde o mapeamento colectivo de recursos e necessidades comuns, à realização de assembleias pragmáticas, conversas e oficinas, passando pelo mercadinho de trocas e uma noite de celebração com palco térreo improvisado aos ritmos da resistência catalã*, o programa do encontro foi feito por todos e todas e esteve desde cedo aberto a propostas de actividades (online em Titanpad.com/Trobada-Ecoxarxes-Juliol-2014).
A moeda social fez-se virtualmente presente. A inscrição era necessária, para organizar transportes e “fazer uma boa previsão das comidas e espaços comuns”. Cada participante deveria contribuir com 20 unidades monetárias, em qualquer moeda, ou com bens no mesmo valor que pudessem servir o próprio encontro (como alimentos para as refeições), ou ainda com participação nos “grupos eco-activos”, dedicados essencialmente à cozinha, às limpezas e à “acogida”.
![Acogida: espaço de acolhimento e recepção para quem chega e de coordenação das actividades (uma constante nos espaços autónomos que visitei).](https://saritamoreira.com/wp-content/uploads/sites/2/2014/08/Acogida03-1024x575.jpg)
![Info point](https://saritamoreira.com/wp-content/uploads/sites/2/2014/08/Acogida02-1024x646.jpg)
Manhã radiosa de sábado para a cozinheira e directora da “Associació Menjadors Ecològics”, Nani Moré, abrir o apetite de todos os presentes com a partilha da experiência das cantinas escolares ecológicas e de proximidade na Catalunha.
O projecto transversal de formação e acompanhamento integral que Nani dirige, “Menjadors Ecològics”, serve cantinas escolares da Catalunha com refeições saudáveis e ecológicas e integra-as num projecto educativo alargado às crianças, pais e mães, educadores e produtores.
![Nani Moré apresenta as cantinas ecológicas no encontro de eco-redes.](https://saritamoreira.com/wp-content/uploads/sites/2/2014/08/nani-more-1024x575.jpg)
O projecto estrutura-se em torno de três eixos: produção de alimentos ecológicos; alimentação e menús escolares; educação alimentar e ambiental. Um relatório em .pdf (15 páginas) está disponível no site do projecto, e inclui pré-visualização de um mapa das cantinas que já adoptam esta práctica e filosofia (a ser lançado em Setembro de 2014).
No documentário “El Plat o la Vida” (“O prato ou a vida”, ou “a diferença entre encher barrigas e alimentar pessoas”), a própria Nani Moré expõe a situação actual do sector e aponta medidas concretas para a sua reinvenção.
A emancipação tecnológica era “cabeça de cartaz” do encontro, com a apresentação do IntegralCES, ou “Integral Community Exchange System” (Sistema Integral de Trocas Comunitárias), uma plataforma open source desenvolvida na Catalunha para a gestão de comunidades de moedas sociais.
![Esteve Badia, o cérebro por trás do desenvolvimento, veio ao encontro levantar o véu à primeira versão deste sistema informático de intercâmbio que permite coordenar a rede de eco-redes, com todas as moedas que lhe estão associadas.](https://saritamoreira.com/wp-content/uploads/sites/2/2014/08/esteve-badia-1024x575.jpg)
O IntegralCES é um módulo de software livre, programado em Drupal, que constrói sobre a experiência de utilização do original CES (Community Exchange System, criado e mantido na África do Sul) ao longo dos últimos anos pela maioria das eco-redes espanholas.
A ser adoptada a partir de Setembro por vários grupos da Catalunha, a nova ferramenta de gestão de comunidades de troca disponibiliza uma interface melhorada, com funcionalidades à medida da realidade local, como a possibilidade de trocas “multi-recíprocas” (intercâmbio), e o envio automático de alertas por email sobre procuras e ofertas. Acima de tudo, e partindo mais uma vez da ideia de autonomia, o IntegralCES traz a liberdade de se poder instalar a plataforma em servidores próprios e alterá-la a bel-prazer (características que o CES original não tinha).
O compromisso com a transição para a autonomia integral é transversal. Isso implica que há diálogo, tolerância e entendimento construtivos entre o produtor de tomates, a cozinheira, o professor, a jornalista, o documentarista e a profeta dos microorganismos efectivos, todos os nós activos, incluindo o Esteve, engenheiro informático, que embora ainda esteja dentro do sistema capitalista (e, segundo o próprio, não seja “radical da moeda social”), guardou um tempo para fazer a sua parte na demanda da autonomia integral, no que toca a soberania digital e tecnológica, pegando na ferramenta com as próprias mãos e moldando-a à “máquina de guerra” que é a sua comunidade alargada.
A rede é feita por nós que disponibilizam bens, serviços e conhecimentos para a construção de um sistema de relações económicas que subsista à margem do capitalismo.
A Cooperativa Integral Catalã é a entidade legal que liga várias destas eco-redes, reunindo já cerca de 2.000 associados. Diz-se integral porque pretende cobrir “tots els àmbits de la vida”, da educação à saúde e alimentação, um tecto para viver, trabalho, lazer, almejando “reconstruir a sociedade a partir da base, de forma integral, recuperar as relações humanas afectivas, de proximidade e baseadas na confiança”.
Rompendo com o síndrome das capelinhas – “cada pessoa uma empresa”, “cada projecto uma associação”, “cada sector uma cooperativa” – , a CIC é usada como ferramenta colectiva por nós e eco-redes que se associam para partilhar recursos (como um único NIF) e cobrir necessidades reais e básicas de outras pessoas na rede, minimizando a necessidade de se usar euros. A rede de redes pretende impulsionar um mundo em que seja possível “recuperar a dimensão ética e humana das actividades económicas, superando o individualismo e a competitividade capitalista”. Fazer-em-conjunto mecanismos de suporte que possibilitam o desenvolvimento de novas competências e habilidades que vão para além das puramente profissionais.
![“Vivemos e morreremos como sóis e transformamo-nos num pó de ideias que dá forma aos sonhos.”](https://saritamoreira.com/wp-content/uploads/sites/2/2014/08/IMG_0685-1024x768.jpg)
Voltamos ao coração da grande cidade. Bem ao lado da Sagrada Família, as instalações impecáveis de uma clínica médica insolvente transformada em “espaço aberto à revolução integral”. Três andares e terraço de “Aurea Social”, uma espécie de sede da CIC em Barcelona que fomenta “a criação e o desenvolvimento de ferramentas e recursos que facilitam a autonomia, o empoderamento(tanto a nível pessoal como colectivo) e a auto-gestão local”.
Vídeo da campanha de colectivização da Aurea Social, FEM-LO COMU (“let’s make it common!”). A iniciativa impediu que o banco ficasse com o edifício e garantiu o desenvolvimento do projecto no centro de Barcelona.
Consultórios que são salas de servidores, gabinetes de medicinas alternativas, mercearia, uma cozinha comunitária, terraço com horta produtiva e canteiros de plantas medicinais, vestiários, três andares de salinhas para crianças, danças, encontros e espaços de trabalho, biblioteca, sala de exposição.
Não falta a dita “acogida”, o “espaço de recepção e coordenação de actividades em espaços de aprendizagem colectiva”. O ponto de entrada e de convergência de informação, a cara para o mundo logo desde a montra virada para o passeio largo de grande circulação pedonal.
![Montra da Aurea Social](https://saritamoreira.com/wp-content/uploads/sites/2/2014/08/aurea-social-1024x575.jpg)
![Terraço da Aurea Social, Barcelona](https://saritamoreira.com/wp-content/uploads/sites/2/2014/08/IMG_0688-1024x768.jpg)
A espera pela abertura vespertina do espaço, às 16h, foi preenchida com uma dose de informativos sobre a revolução integral. Um sofá no exterior cola-se à montra no passeio; ela é face do poder de comunicação e alcance dos movimentos sociais catalães. Cartazes, flyers, convocatórias, notícias e organigramas. Pessoas param na passagem para ler sobre as últimas assembleias de bairro na cidade, tiram contactos da rede de estudos pela autonomia ou do projecto educativo LaMainada.org, marcam na agenda o próximo encontro das oficinas de transportes e de desobediência económica.
Ao lado do cartaz do canal de televisão dos movimentos sociais, La Tele (@okupenlesones), duas notícias em destaque sobre Enric Durán, publicadas no The Guardian e The Washington Post: o “Robin Hood” catalão que sacou quase 500 mil euros em dezenas de créditos à banca sem intenção de vir a repô-los, para distribui-los pelos movimentos sociais.
“Haverá melhor do que roubar os que nos roubam e repartir o dinheiro entre os grupos que o denunciam e constroem alternativas?”, explica Duran sobre a “acção individual de insubmissão à banca que [realizou] premeditadamente [em 2008] para denunciar o sistema bancário e para destinar o dinheiro a iniciativas que alertem sobre a crise sistémica que estamos a começar a viver, e que tratem de construir uma alternativa de sociedade.”
Da subversão à criação suprema, já levam bons anos de avanço na construção das bases e atingem uma maturidade rizomática “com força suficiente para sacudir e desenraizar o verbo ser”** – porque se superam no compromisso com a transformação da sociedade a partir da base. São representação do rizoma como aliança, mil planaltos de resiliência em transição para a autonomia integral. E nós, estamos à espera de quê?
«Enquanto continuarmos prisioneiros de uma concepção das relações sociais herdada do século XIX, (…) ficaremos fora da realidade, continuaremos a dar voltas nos nossos guetos, ficaremos indefinidamente na defensiva, sem conseguir apreciar o alcance de novas formas de resistência que surgem nos mais diversos campos. Trata-se portanto, de primeiramente medir em que grau estamos contaminados pelos artifícios do CMI [Capitalismo Mundial Integrado]. O primeiro destes artifícios é o sentimento de impotência que conduz a uma espécie de ‘abandonismo’ às suas ‘fatalidades’. (…) Cabe a cada um de nós apreciar em que medida – por menor que seja – podemos contribuir para a criação de máquinas revolucionárias capazes de acelerar a cristalização de um modo de organização social menos absurdo que o atual.»
Félix Guattari, Revolução Molecular: pulsações políticas do desejo
* Do título, “El cambio ya viene y decido / o decido y el cambio ya viene” , obrigatório ouvir todas as músicas de Sílvia Tomás, a mais doce voz da resistência catalã. (download gratuito em silviatomas.bandcamp.com)
** Gilles Deleuze e Felix Guattari, Mil Planaltos – Capitalismo e Esquizofrenia